segunda-feira, maio 22, 2006

Maria Rosa Colaço

Escrever é tentar perceber o desalinho das coisas

Uns conhecem-na pela A Criança e a Vida "esse milagre de pedagogia poética" (nas palavras de Urbano Tavares Rodrigues), outros pela canção dos Trovante (Junto destes olhos/ eu sou testemunha/ que as histórias nascem/ por coisa nenhuma). Há quem tenha presente a "cronista das pequenas coisas do quotidiano" (crónicas publicadas regularmente, ao longo de 20 anos, no jornal A Capital), outros, mais ligados às Galerias de Arte, associam-na às exposições (algumas itinerantes) e aos inúmeros catálogos que prefacia, legenda e analisa pinturas de Albino Moura, Roberto Chichorro, Louro Artur, Carlos Canhão ou fotografias de Eduardo Gageiro. Os indefectíveis, que a têm por companhia nestes 44 anos de vida literária (em que foi galardoada com os Prémios Revelação de Teatro - A Outra Margem, 1958, Soeiro Pereira Gomes - Gaivota, 1982 e Alice Gomes da Associação Portuguesa para a Educação pela Arte - O Pássaro Branco, 1989), não prescindem da leitura poética dos seus romances, novelas, contos, assim como poesia e teatro. Por último, as crianças e os jovens conhecem-na dos livros de literatura infanto-juvenil (de leitura obrigatória) ou dos seus textos espalhados por inúmeros manuais escolares.Maria Rosa Colaço nasceu no Torrão (Alcácer do Sal) em 1935 (hoje tem por lá uma rua com o seu nome). Fez o curso de Enfermagem no Instituto Rockfeller mas, entretanto, optou pelo jornalismo que exerceu nos vários lugares do mundo por onde teve a sorte de passar (por exemplo, no Notícias da Beira e Notícias de Lourenço Marques). Frequentou a Escola do Magistério de Évora e tornou-se professora do ensino primário (em Cacilhas, "o laboratório inicial onde começou a germinar A Criança e a Vida", e em Lourenço Marques). Foi assessora do Prof. António Reis na RTP, durante 12 anos, autora de alguns programas para crianças - "Eu sou capaz"; "Como é, como se faz, para que serve". Tirou o curso de Guionismo e escreveu vários guiões que, como o de quase todos os seus colegas, nunca foram realizados.É medalha de ouro para a cultura da Câmara Muncipal de Almada. No Feijó, há uma escola com o o seu nome.
P- É um caso único, no campo editorial português, uma antologia de textos infantis ir já nas 47 edições! (hoje mesmo, dia da entrevista, acaba de sair no México). A Criança e a Vida foi um começo auspicioso?
Sim. A Criança e a Vida saiu primeiro em Moçambique. Tinha levado comigo para África as redacções das crianças, como quem leva as cartas dos namorados. Um exemplar chegou ao director do ITAU que foi a Moçambique conhecer-me e propor a reedição em Portugal. Eram os anos 60, os estudantes acordavam definitivamente para as tarefas de luta. O pequeno livro, que cabia num bolso de casaco, entrou nas universidades como elemento quase mágico e começou a ser uma espécie de santo e senha entre os jovens. As crianças na sua voz lúcida e sem medo tinham escancarado as portas à denúncia dos podres e ao medo que corria nocturno e atento. Apesar do burburinho, algumas pessoas duvidaram da autenticidade dos textos. Levaram os miúdos à televisão para ver se os apanhavam em falso. Entre essas pessoas, há uma de quem sou até muito amiga mas cuja dúvida me magoou tanto que nunca esqueci: o Mário Castrim.

P- Qual a sua relação com África?
Sempre dei aulas a crianças africanas, mas não me era fácil. Eu ensinava o Português, claro, mas interrogava-me sempre: com que autoridade moral ou linguística posso corrigir um texto de uma criança que tem uma estrutura da linguagem completamente diferente da minha? Lá corrigia o possível, mas sempre perguntando-me com que direito? Se essa era a língua que estava geneticamente na sua linguagem. Anos depois, descobri que havia uma luta subjacente pela liberdade e, para lhes mostrar que estava solidária com a sua luta, para chegar a um entendimento, discreto mas firme, comecei a trabalhar temas que fugissem ao quotidiano dos programas, organizei exposições com os desenhos dos meninos, e os seus livros de leitura também éramos nós que os construíamos, dia a dia, página a página.

P- Quando volta a Portugal?
Só quatro anos depois da Independência. Eu e o meu marido fomos dos que esperámos o milagre do entendimento fraterno. Ainda fiz alguns livros para o Ministério da Educação. Escrevi O Continuador e a Revolução, uma antologia "das primeiras vozes livres dos meninos de Moçambique", a pedido da Graça Machel que conhecia A Criança e a Vida(sempre trouxera no seu bornal de guerrilheira um exemplar, já muito roto).

P- A experiência africana marcou-a para sempre...
Logo a seguir à Independência parecia ter havido um vendaval. O Poder Popular, mal se inscreve nas braçadeiras vermelhas dos militantes, é uma arma de terror, sem complacência nem memórias de ternura. Não acredito em nenhuma forma de violência como solução para os males da Terra. De um dia para o outro, aquele povo manso, tranquilo, ardia de ódio, ambição, explodia em denúncia, feria os seres mais indefesos. Tudo o que não prestava no poder colonial veio à tona e exercia a sua ferocidade. É espantoso como se pode destruir um país inteiro, que funcionava com escolas, fábricas, caminhos de ferro, portos, em menos de nada. Até o piripiri do caril se acabou. Depois a legião dos colaboradores internacionais, a ganhar dólares, a comer o pão que o povo não tinha. Que horror!

P- Foi uma época terrível ...
Em África houve nessa altura crimes que a história nunca há-de apagar. O que os moçambicanos no poder fizeram ao seu povo ainda tem de ser contado para que possamos ter dignidade na memória. Não imagina os milhares de mulheres e crianças que morreram nos campos de re-educação. O que eram esses campos? Eram zonas, no mato, com arame farpado à volta sem as mínimas condições de sobrevivência.

P- A Lídia Jorge dizia que a "Rosa Colaço procura atingir a alma do mundo. Fá-lo de um modo lírico". Eu diria que também o faz através das crianças...
As crianças entendem muito bem a linguagem poética. Os adultos é que duvidam dessa capacidade.

P- Mas os professores normalmente têm uma posição muito relutante quanto à poesia...
Encontramos muita gente que não acredita nesta forma de ensino, talvez porque não tem imaginação. Por isso é que acho importante o contacto entre professores e escritores. Muitas vezes, nem passa pela cabeça dos professores que existem caminhos de poesia (e de pintura) que podem ajudar as crianças a construir o programa escolar.

P- Esse contacto com a poesia seria mais útil aos professores do que o recurso tradicional às didácticas?
Creio que sim. Quando visito as escolas, às vezes deixo um recado às professoras: "não estejam preocupadas só com o programa escolar." Depois dou-lhes sugestões de trabalho. Há ainda uma grande carência de modernas práticas pedagógicas, os professores acham-se quase sempre mal retribuídos no seu esforço diário, não têm escola certa para começar uma sementeira e poder colher os frutos e isso veste-os de desânimo e indiferença.

P- A Rosa Colaço promove muito a poesia e por ela valoriza muito a imaginação e o sonho nas crianças, mas essa é uma vertente que a escola normalmente subestima...
Eu não sei se ainda subestima assim tanto. As crianças, desde que sejam habituadas, sentem uma maior atracção pela linguagem poética do que pela outra, que é mais científica e mais árida. E nem é preciso estar sempre no poema, basta introduzir a linguagem poética num texto concreto que logo surgem mil maneiras de contar a mesma coisa. Isso faz-se quase instintivamente. Levá-las a descobrir o lado belo das coisas. Elas imitam muito. Por exemplo: outro dia estava cá em casa um dos autores de A Criança e a Vida e eu perguntei-lhe: um dia tu disseste-me assim: "estou farto da minha cara cor de missanga". Tinhas sete anos, nunca foras a África, o que é que querias dizer com a palavra "missanga"? E ele disse: "a Maria Rosa tinha falado nessa palavra na aula e eu achei-a tão bonita!" Como outro meu aluno que uma vez escreveu "o amor é não haver polícias". No dia da inauguração da Escola Maria Rosa Colaço ele veio de propósito da Suíça para estar ao meu lado. E eu perguntei-lhe: "Por que disseste aquilo?" Então ele confidenciou que tinha escrito aquilo porque na altura o pai estava preso em Caxias, mas não podia contar-me. Quer dizer, a criança carrega lá dentro dores e sofrimentos que temos de descobrir. Obviamente que isto não é andar a ler, à força, Fernando Pessoa, todos os dias.

P- Acha que a literatura é bem tratada nos manuais de ensino?
Às vezes não se entende muito bem a selecção dos textos. Há um afastamento muito grande do social e deveria haver uma maior aproximação no sentido de ensinar às crianças o mundo que as rodeia. O mundo da imagem é também um caminho para as levar a serem integradas nos problemas do seu tempo. Uma criança preocupada é uma criança que aprende que tem de fazer qualquer coisa pelos outros, ser útil, ser solidária.

P- Como consegue manter essa grande esperança na Educação?
Eu nunca tive tanta esperança no ensino como agora. Acho que o professor é o passaporte para aquilo que há de bom no mundo. E se alguém desse valor, neste país, ao professor primário e lhe fizesse sentir a responsabilidade do que é pegar numa criança que sai de casa e é entregue nas mãos do professor nesses primeiros anos e o que ele pode semear nesse tempo...Meu Deus! Esta responsabilidade, este dever social em relação ao mundo em que habitamos, devia ser uma disciplina da escola, mais do que as Matemáticas. Cabe ao professor do 1º ciclo a semente destes valores essenciais à Paz, à Fraternidade, ao Entendimento dos Povos que devia ser preocupação primordial de todos os agentes de ensino.

P- Que tipo de professora foi a Mª Rosa Colaço?
Fui, talvez, uma professora que sobretudo tentou sempre inovar (sabendo que a inovação é um espinho que fere os sereníssimos tímpanos dos acomodados). Sempre defendi uma teoria: para ser feliz, tenho de me sentir bem no meu trabalho. Nessa altura eu não podia estar só a ensinar os Reis de Portugal, a tabuada, as insípidas redacções cuja temática era uma náusea, porque eu gostava era de poesia, música e literatura. Por isso, quando levava as minhas crianças a descobrir esse outro lado dos dias, não era propriamente pelo sentido pedagógico, sejamos honestos. Eu tinha 20 anos, queria ser feliz e transmitir um pouco dessa felicidade aos outros, partilhar o riso, a ironia, ensinar que há outro lado da dor e que temos que ser nós, nós com a nossa coragem, a fazer isso.

P- Sente que foi uma professora eficaz?
Sinto. Pode parecer uma afirmação de autoconvencimento, mas é talvez das poucas certezas que carrego. Sempre fui para escola como se fosse para uma festa. Nunca saí da escola a pensar: aquele é um estúpido não aprende. Sempre vim para casa dar voltas ao pensamento para encontrar outras maneiras de me entenderem melhor. Pensava: há-de haver outra maneira. Há sempre outra maneira. Essa procura é o fio condutor dos dias para alcançarmos o sonho, para derrubar as sombras e acender o sol que, um dia, aquecerá todo o frio do mundo.

Luís Souta; Maria Rosa Colaço; Jornal a Página da Educação" , ano 11, nº 112, Maio 2002, p. 40.

2 comentários:

XannaX disse...

"há-de haver outra maneira. Há sempre outra maneira. Essa procura é o fio condutor dos dias para alcançarmos o sonho, para derrubar as sombras e acender o sol que, um dia, aquecerá todo o frio do mundo"
Lindo! E fez-me pensar... Acho que vou utilizar esta frase para o meu "finale"!! bigado amiga!
Beijo grande

disse...

DE nada, Mag, sabes que meti este post a pensar em ti? E depois estive montes de tempos para passar uma foto com 1 poema dum ex-aluno dela, e onde eu dizia que talvez pela forma como tu e ela se relacionam com as criança,eu via neste texto muito de ti....mas azar dos azares, não consegui, apagou-se! E depois, mais tarde, a ouvir a música que tínhamos no n/ blog, acabei por escrever aquele desabafo.Sabes que tens aquele k de magia, imagino que terás 1 belo trabalho para apresentar.Beijo terno